Acontecimento
de 24 de Outubro a 29 Novembro
Ateliers do Matadouro, Alvito — Alentejo





Acontecimento:
Materialismo do incorporal

“(...) o acontecimento não é da ordem dos corpos. E no entanto, ele não é imaterial, é sempre ao nível da materialidade que ele se torna efectivo, que ele é efeito; ele tem lugar e consiste na relação, na consistência, na dispersão, recorte, acumulação e selecção de elementos materiais, o acontecimento não é o acto nem a propriedade de um corpo; produz-se como efeito e numa dispersão material.”
in A ordem do discurso, M. Foucault

No conjunto de trabalhos que aqui apresento, é dada especial importância à plasticidade dos materiais, privilegiando a especificidade de cada um, bem como a relação que estabelecem com o suporte. As suas diferenças e incompatibilidades são tomadas como motor para a produção da obra.
O corpo — assunto frequente no meu trabalho — é assim suplantado, (pelo menos num primeiro momento) pela pesquisa ao nível da técnica e dos materiais utilizados. Tal acontece no caso do desenho em que os materiais constituem o assunto do trabalho, tornando-se responsáveis pela forma como se organizam as marcas deixadas no papel. Os materiais, cujas diferentes características físicas impõem um certo tipo de procedimento, passam a orientar o processo de produção, sendo a responsabilidade da composição transferida para o material.
As qualidades da matéria ditam o modo como o desenho se constrói; enquanto o desenho acontece, os efeitos produzidos são assumidos como motivo para a sua progressão. O processo poderá decorrer quer por meio de acumulação, quer mediante a tentativa de dissolução das manchas iniciais — “os factos posteriores deformam até ao inextricável a lembrança das nossas primeiras jornadas” (“ O imortal”, O Aleph). Interessa-me a imprevisibilidade da aguarela, a elasticidade do pastel de óleo, a difícil convivência destes materiais cujo confronto é provocado sobre o papel.

O acidente e a casualidade são assumidos, nestes desenhos, como regras, das quais resulta a composição. Estando a aguarela associada a uma certa perda de controlo autoral, procuro assim libertar-me do exercício forçoso da composição, bem como da responsabilidade e preparação que se impõe no início do trabalho. Tratando-se a aguarela de um medium que produz efeitos imprevisíveis, dependentes da sua constituição física, e que precedem o acto pictórico, ela retira desde o primeiro momento do desenho, parte da responsabilidade da sua construção. As forças autogeradoras da própria técnica antecipam o momento de inscrição no papel.
Esses efeitos — zonas de maior concentração de pigmento, filigranas em que a cor se decompõe noutros tons — são usados como proposição para o momento seguinte, acumulando camadas segundo um processo de sedimentação. O erro constitui nestes trabalhos um factor determinante, sendo usado com frequência, como motivo para uma nova intervenção no desenho. Trata-se de gerir a imprevisibilidade do medium, percebendo o erro como uma situação privilegiada, tomando-o como elemento generativo do desenho. A partir de impressões acidentais, produzidas durante a manipulação dos materiais, é gerado um conjunto de respostas que dão continuidade ao desenho, e para as quais vão sendo convocados os vários materiais. A transparência da aguada contrasta com a opacidade do pastel, criam-se vários níveis de profundidade dentro do desenho, onde as diferentes texturas convivem.

Também na produção de objectos são usados materiais com características muito diferentes e cujo encontro tende a acentuar. Estas construções resultam de acções simples, — por vezes repetidas formando padrões — e que revelam estruturas que, apesar da sua inutilidade operativa, sugerem com frequência um modo possível de utilização, num consequente retorno ao corpo.

Tal como Merce Cunningham na produção das suas obras coreográficas, não me preocupam as emoções e as ideias que estão antes destes trabalhos. Neste momento foco essencialmente o material e a forma como me pode conduzir à medida que o trabalho se vai construindo. Estes trabalhos afirmam o erro e a imprevisibilidade, tornando-os efectivos, fazendo-os existir, transformando-os em acontecimentos. Caracterizado como uma ruptura no curso das coisas, de carácter espontâneo, o erro constitui uma situação privilegiada no processo de trabalho. Situado fora do corpo, é ao nível da materialidade que ele se concretiza.